Quebranto

A quebra dos preconceitos e a visão exuberante dos Orixás

O Espetáculo Quebranto que o Grupo Sarandeiros estreou em 2008 procura quebrar com conceitos e pré-conceitos sobre as divindades africanas e afro-brasileiras cultuadas no Brasil. As lendas e histórias dos grandes Reis Africanos que se tornaram Orixás (Ori = Cabeça (física e astral) + Ixá = guardião) são a base para compreensão das coreografias que compõem o espetáculo. Orixás são elementos energéticos existentes no universo e cada um representa uma força da natureza oriundas da água, da terra, do ar e do fogo, principalmente. Essas forças em equilíbrio produzem uma enorme energia (ashé), que auxilia no dia-a-dia das pessoas, ajudando-as para que o destino se torne cada vez mais favorável. Na origem deste culto estão os povos negros que na maioria das nações existentes na África, anteriores à era cristã, conheciam a existência dos Orixás e os relacionavam com as energias de todos os elementos da natureza, sendo que cada elemento é representado por um Orixá. A religião do Candomblé, que tem por base a “anima” (alma) da Natureza, sendo, portanto, chamada de anímica, foi desenvolvida no Brasil com o conhecimento dos sacerdotes africanos que foram escravizados e trazidos da África para o Brasil, juntamente com os seus Orixás/Inquices/ Voduns, a sua cultura, e o seu idioma, entre 1549 e 1888. Embora circunscrito originalmente à população de escravos, proibido pela igreja católica, e criminalizado mesmo por alguns governos, o Candomblé prosperou nos quatro séculos, e expandiu consideravelmente desde o fim oficial da escravatura em 1888. É agora uma das principais religiões estabelecidas no país, com seguidores de todas as classes sociais e dezenas de milhares de templos. Segundo as lendas e histórias relatadas em diversos livros os Orixás foram os primeiros seres que habitaram a Terra. Dentre os muitos Orixás que existem abordaremos neste show, 10 ORIXÁS DE PREDOMINÂNCIA, os mais cultuados no Brasil, e 02 ORIXÁS FUNFUNS, IFÁ E OXALÁ, os mais conhecidos e também cultuados. Pela ordem, trataremos dos seguintes orixás de predominância: EXU, NANÂ, OBALUIAIÊ, OXUMARÊ, OXÓSSI, YEMANJÁ, OGUM, OXUM, XANGÔ, YANSÃ*. (PS*: Utilizaremos a nomenclatura nagô por ser a mais utilizada no Brasil.

I Coreografia: O Ifá

O destino das pessoas e tudo o que existe pode ser desvendado por meio da consulta a Ifá, o oráculo, que se manifesta e inspira a primeira coreografia realizada pelo grupo. No início de todas as relações que compõem a “conjunção energética” do Candomblé está Ifá, o Orixá da adivinhação. Através dele e do jogo de búzios, podemos averiguar o porquê das situações serem adversas as de sua vontade e se a mesma está em um caminho diferente ao destinado ou escolhido.

II Coreografia: Exu – O livre arbítrio

A Primeira dança dos orixás de predominância apresentada no espetáculo Quebranto, foi inspirada nas lendas e movimentos relacionados a Exu, o mensageiro dos orixás, e relata a inter-relação do ser humano com os guardiões da natureza. O intermediário do jogo de Búzios é Exu. Diz uma lenda que apenas Exu tinha o dom da adivinhação. Mas, a pedido de Orunmilá, Deus supremo, Exu transmitiu seus conhecimentos a Ifá e em troca Exu recebeu o privilégio de receber sempre em primeiro lugar as oferendas e sacrifícios antes de qualquer outro orixá. Por isso ele será reverenciado primeiramente no show. Exu representa o princípio do movimento, e tudo é movimento no universo (desde o sangue nas nossas veias até o movimento dos planetas). Exu está nas encruzilhadas de tudo que nos rodeia, fazendo a ligação das partes no todo energético que existe no mundo. Exu também está ligado à sexualidade, aos prazeres humanos, ao livre arbítrio dos prazeres, arquétipos que isnpiraram a coreografia no espetáculo.

III Coreografia: Nanã

Nanã, a deusa dos mistérios, é uma divindade de origem simultânea à criação do mundo. O seu nome designa pessoas idosas e respeitáveis e significa “mãe”. Na região onde hoje se encontra a República do Benin, Nanã é muitas vezes considerada a divindade suprema e talvez por essa razão seja freqüentemente descrita como um orixá masculino. Nanã teria o mesmo posto hierárquico de Oxalá e é sempre associada à maternidade. É um dos orixás mais velhos da água que, associado às águas do céu e à lama, tem o poder de dar vida e forma aos seres humanos. O seu elemento é a lama do fundo dos rios. Ela é a deusa dos pântanos, da morte (associada à terra, para onde somos levados após a morte) e da transcendência. Os filhos de NANÃ dançam devotando-lhe muito respeito. Os seus movimentos lembram o andar de uma senhora idosa, com passos lentos, o corpo curvado para a frente e apoiado no Ibiri. Os movimentos são de pessoas extremamente calmas, tão lentas no cumprimento das suas tarefas que chegam a irritar. Agem com benevolência, dignidade e gentileza. Na coreografia, explorara-se a lenda da criação do homem por Nanã, que retira do barro a origem do ser humano.

IV Coreografia: Obaluaiê/ Omulu

Omulú (velho) / Obaluaiyê (novo)

Omulú ou Obaluaiyê, também conhecido como o Orixá das doenças ou da varíola e outras doenças contagiosas, é muito respeitado. Obaluaiê é a forma jovem do Orixá, enquanto Omulú é a sua forma mais velha. A figura deste orixá é completamente cercada de mistérios e dogmas, sendo-lhe atribuído o controle sobre as doenças, especialmente as epidemias. Filho de Nanã, advém da cultura Jêge assimilado mais tarde pelos Iorubás e nagôs, originário do Daomé, atual República de Benin. Obaluaiê quer dizer “rei e dono da terra”, e a sua veste é de palha onde ele esconde o segredo da vida e da morte. Ele está relacionado com a terra quente e seca, como o calor do fogo e do sol – calor que lembra a febre das doenças infecto-contagiosas. O seu poder está extraordinariamente ligado à morte, mas também à vida pela reencarnação. OBA significa Rei, ILU espíritos e AIYÊ, terra, ou seja, Rei de Todos os Espíritos do Mundo. Ele lidera e detém o poder dos espíritos e dos ancestrais, os quais o seguem. Oculta sob o saiote o mistério da morte e do renascimento (o mistério do gênesis). Ele é a própria terra que recebe os nossos corpos para que se tornem pó, médico dos pobres e o senhor dos cemitérios. Os filhos deeste orixá podereso cultivam a sua individualidade, são austeros e causam medo aos outros. São introspectivos e quando dançam se mostram de forma amarga e dolorosa, mas de infinita beleza, pois a dança de Obaluiaiê nos traz a redenção dos nossos medos e pecados, através da dor e da penitência.

V Coreografia: Oxumaré – O Feminino e o Masculino em movimento

Oxumaré é o Orixá de todos os movimentos, de todos os ciclos. Se um dia Oxumaré perder as suas forças o mundo acabará, porque o universo é dinâmico e a Terra também se encontra em constante movimento. Oxumaré não pode ser esquecido, pois o fim dos ciclos é o fim do mundo. Oxumaré mora no céu e vem a Terra visitar-nos através do arco-íris. Ele é uma grande cobra que envolve a Terra e o céu e assegura a unidade e a renovação do universo. Filho de Nanã, Oxumaré é originário de Mahi, no antigo Daomé. Na região de Ifé é chamado de Ajé Sàlugá, aquele que proporciona a riqueza aos homens. Dizem que Oxumaré seria homem e mulher, mas, na verdade, este é mais um ciclo que ele representa: o ciclo da vida, pois da junção entre masculino e feminino é que a vida se perpetua. Oxumaré é um deus ambíguo, duplo, que pertence à água e à terra, que é macho e fêmea, por isso um homem e uma mulher representam, na coreografia esta ambiguidade. Ele exprime a união dos opostos, que se atraem e proporcionam a manutenção do universo e da vida.

VI Coreografia:Oxóssi – O domínio da cultura sobre a natureza.

Oxóssi é o Deus caçador, senhor da floresta e de todos os seres que nela habitam, Orixá da fartura e da riqueza. Oxóssi é o rei de Ketu, segundo dizem, a origem da dinastia. A Oxóssi são conferidos os títulos de Alakétu, Rei, Senhor de Ketu, e Oníìlé, o dono da Terra, pois na África cabia ao caçador descobrir o local ideal para instalar uma aldeia, tornando-se assim o primeiro ocupante do lugar, com autoridade sobre os futuros habitantes. Na história da humanidade, Oxóssi cumpre um papel civilizador importante, pois na condição de caçador representa as formas mais arcaicas de sobrevivência humana, a própria busca incessante do homem por mecanismos que lhe possibilitem sobressair no espaço da natureza e impor a sua marca no mundo desconhecido. Oxóssi é o orixá da fartura e da alimentação, aquele que aprende a dominar os perigos da mata e vai à busca da caça para alimentar a tribo. A colheita e a caça, representadas nos movimentos da dança, são formas primitivas de busca de alimento e são os domínios de Oxóssi, Orixá que representa aquilo que há de mais antigo na existência humana: a luta pela sobrevivência.

VII Coreografia: Yemanjá – A mãe de todos nos acolhe em seus braços

No Brasil é talvez o culto mais venerado, e tornando-se quase independente do Candomblé. Rege a maternidade, é a mãe dos peixes, que representam fecundidade. Gosta muito de flores e é o costume oferecer-lhe sete rosas brancas abertas, sem espinhos, que são lançadas ao mar para agradecimento. É a rainha de todas as águas do mundo, sejam as dos rios, ou as do mar. O seu nome deriva da expressão Yéyé Omó Ejá, que significa, mãe cujos filhos são peixes.

Na África era cultuada pelos Egbá, nação Iorubá da região de Ifé e Ibadan onde se encontra o rio Yemojá. Apesar de no Brasil Yemanjá ser cultuada nas águas salgadas, a sua origem é num rio que corre para o mar. Inclusive, todas as suas saudações, orikís e cantigas remetem para essa origem, Odó Iyà, por exemplo, significa mãe do rio, já a saudação Erù Iyà faz alusão às espumas formadas no encontro das águas do rio com as águas do mar, sendo esse um dos locais de culto a Yemanjá. Ela é a mãe de todos os filhos, mãe de todo o mundo. Em uma das lendas Yemanjá acabou desfazendo-se nas suas próprias lágrimas transformando-se num rio que correu em direção ao oceano. Não é por acaso que as lágrimas e o mar têm o mesmo sabor. Na dança realizada, exploraremos o lado mãe de Yemanjá, e também o da razão e da loucura que ela pode, ao mesmo tempo, nos impor através das suas decisões.

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VIII Coreografia: Ogum – A Espada! Eis o braço de Ogum.

Ogum é o temível guerreiro, violento e implacável, deus do ferro, da metalurgia e da tecnologia; protetor dos ferreiros, agricultores, carpinteiros, escultores, sapateiros, metalúrgicos, marceneiros, maquinistas, mecânicos, motoristas e de todos os profissionais que de alguma forma lidam com o ferro ou metais afins. Orixá conquistador, Ogum fez-se respeitar em toda a África devido ao seu caráter devastador. Foram muitos os reinos que se curvaram diante do poder militar de Ogum. Foi este orixá podereso quem ensinou aos homens como forjar o ferro e o aço. Ele tem um conjunto de sete instrumentos de ferro: alavanca, machado, pá, enxada, picareta, espada e faca, com as quais ajuda o homem a vencer a natureza. Em todos os cantos da África, Ogum é conhecido, pois soube conquistar cada espaço daquele continente com a sua bravura.

IX Coreografia: Oxum – Eu seduzo a todos, mas amo a mim mesma.

Na Nigéria, mais precisamente em Ijesá, Ijebu e Osogbó, corre calmamente o rio Oxum, a morada da mais bela Iyabá, a rainha de todas as riquezas, a protetora das crianças, a mãe da doçura e da benevolência. Generosa e digna, Oxum é a rainha de todos os rios e cachoeiras. Vaidosa, é a mais importante entre as mulheres da cidade, a Ialodê. É a dona da fecundidade das mulheres, a dona do grande poder feminino. Oxum é a deusa mais bela e mais sensual do Candomblé. É a própria vaidade, dengosa e formosa, paciente e bondosa. O lado espiritual dos filhos de Oxum é também bastante aguçado. Talvez por isso, algumas das maiores Yalorixás da história do Candomblé, tenham sido ou sejam de Oxum.

X Coreografia: Xangô – Sou a força e o poder, sou rei.

Rei absoluto, forte, imbatível: um déspota, o prazer de Xangô é o poder. Xangô manda nos poderosos, manda no seu reino e nos reinos vizinhos. Xangô é rei entre todos os reis. Percebe-se que a imagem de poder está sempre associada a Xangô. O poder real, por exemplo, é-lhe delegado por ter-se tornado o quarto alafim de Òyó, que era considerada a capital política dos Iorubas, a cidade mais importante da Nigéria. Xangô foi o grande Rei de Òyó porque soube inspirar credibilidade aos seus súditos, tomou as decisões mais acertadas e sábias e, sobretudo, demonstrou a sua capacidade para o comando, persuadindo todos, especialmente com o seu sentido de justiça muito apurado. Xangô expressa a autoridade dos grandes governantes, mas também detém o poder mágico, já que domina o mais perigoso de todos os elementos da natureza: o fogo. O poder mágico de Xangô reside no raio, no fogo que corta o céu, que destrói a Terra, mas que transforma, protege e ilumina o caminho. Xangô era um amante irresistível e por isso foi disputado por três mulheres, soberanas em seus reinos e posteriormente orixás, Iansã, Obá e Oxum. Para a humanidade, Xangô decide sobre a vida de todos, mas sobre a sua vida (e sua morte) só ele tem o direito de decidir. Ele é mais poderoso que a morte, razão pela qual passou a ser o seu anti-símbolo.

XI Coreografia: Yansã – Sou rainha, senhora dos ventos e dos espíritos.

Yansã é um orixá feminino muito famoso, sendo uma das mais populares figuras entre os mitos do Candomblé no Brasil, em Portugal e na África, onde é predominantemente cultuada sob o nome de Oyá. A tempestade é o poder manifesto de Yansã, rainha dos raios e das ventanias. Yansã é a mulher que acorda de manhã, beija os filhos e sai em busca do sustento. O fato de estar relacionada a funções tipicamente masculinas não afasta Iansã das características próprias de uma mulher sensual, fogosa e ardente; ela é extremamente feminina e o seu número de paixões mostra a forte atração que sente pelo sexo oposto. Yansã teve muitos homens e verdadeiramente amou todos. Ela é arrebatadora, sensual e provocante, mas quando ama um homem só se interessa por ele, portanto é extremamente fiel e possessiva. Todavia, a fidelidade de Yansã não está necessariamente relacionada a um homem, mas às suas convicções e aos seus sentimentos. Este sentimento de força, explosão e fogo está presente na coreografia de Yansã.

XII Coreografia: Oxalá – Sou o Pai de toda a criação

Oxalá é o detentor do poder procriador masculino. Todas as suas representações incluem o branco. É um elemento fundamental dos primórdios, massa de ar e massa de água, a pró-forma e a formação de todo tipo de criaturas no Aiye e no Orun. Ao incorporar-se, assume duas formas: Oxaguiã jovem guerreiro, e Oxalufã, velho apoiado num bastão de prata (Opaxorô), arquétipo apresentado no show, como Deus supremo e criador. Oxalá vem cercado por duas guias de santo, que ajudam os orixás, normalmente de olhos fechados, a se moverem pela terra, através do barulho dos sinos. A dança irá passar pelo conhecimento da força da criação existente em Oxalá e a relação espiritual da vida após a morte, a chegada ao Céu de Orum, a morada dos bem aventurados.

XIII Coreografia: XIRÊ – A festa final dos Orixás e a criação da relação entre os humanos e as divindades

A palavra Xirê significa brincar, dançar; denota o tom alegre da festa de Candomblé, onde os próprios Orixás vêm à terra para dançar com os seus filhos. Os atabaques começam a “falar” com os deuses. Os Orixás são invocados com cantigas próprias e os filhos-de-santo “entram-na-roda”, um a um, na chamada ordem do Xirê: primeiro, os filhos de Exu e em seguida os orixás apresentados no show. No Xirê (festa em homenagem aos Orixás), Oxalá é homenageado por último porque é o grande símbolo da síntese de todas as origens. Ele representa a totalidade. Ele é o único Orixá que, como Exú, reside em todos os seres humanos. Todos são seus filhos, todos são irmãos. A coreografia final, encenada em “Quebranto” representa o encontro entre os Deuses e os humanos, traz o caráter festivo que impregna as cerimônias públicas. Nelas, têm-se a percepção de que o contato entre o mundo dos deuses e dos homens é um momento singular. Todos os filhos dançam saudando os seus deuses. E o Quebranto que propusemos, a quebra dos preconceitos sobre a cultura fascinante dos orixás, tem o seu fim.